A pandemia do novo coronavírus colocou as healthtechs brasileiras na prateleira de cima dos investidores de venture capital. Tanto que, de janeiro a setembro deste ano, elas já receberam US$ 69 milhões, em 37 negócios, um aumento de mais de 50%, segundo levantamento do Distrito, um ecossistema independente de startups.
Esse interesse nas startups de saúde ganhou um novo lance nesta terça-feira 20 de outubro. A Sami, uma healthtech que usa tecnologia e dados para reduzir as ineficiências das operadoras de saúde, está recebendo um aporte Série A de R$ 86 milhões (US$ 15,5 milhões) coliderados pelo Valor Capital e pela Monashees. A Redpoint eventures, que participou da rodada seed ao lado da Canary, no ano passado, está seguindo a captação.
É o maior aporte até agora em uma healthtech no Brasil em 2020. Até então, a maior captação deste ano havia sido a da plataforma educacional Sanar, que recebeu US$ 11,7 milhões do Valor Capital e da DNA Capital, em abril deste ano. Em seguida, veio o SouSmile, da área de odontologia, com US$ 10 milhões, e a Conexa Saúde, de telemedicina, com US$ 7,5 milhões.
A Sami, fundada por Vitor Asseituno e Guilherme Berardo, vai usar os recursos para criar um plano de saúde para pequenas e médias empresas e profissionais liberais na cidade de São Paulo a partir de novembro. “Eu quero ser o Nubank dos planos de saúde”, diz Asseituno ao NeoFeed, referindo-se ao banco digital que desafiou os bancos tradicionais e hoje tem 30 milhões de clientes. “Depois da folha de pagamento, os planos de saúde são o segundo custo gerencial de uma empresa. Essa é uma dor gigantesca.”
Fundada em 2018, a startup combina tecnologia e dados para ajudar operadoras de saúde a reduzir suas ineficiências, bem como seus custos operacionais. Agora, a Sami vai passar para o outro lado do balcão, apesar de dizer que continua fornecendo sua solução para os planos de saúde. Atualmente, a startup conta com apenas um cliente, a Unimed, atendendo 200 mil vidas.
O plano de saúde da Sami vai seguir duas estratégias que muitas operadoras de saúde estão tentando aderir para reduzir seus custos: a atenção primária, bem como a verticalização. No caso da startup, ela tem uma singularidade em comparação a alguns de seus pares: não é dona dos ativos, pois faz parcerias com prestadores de serviços. “A minha verticalização é virtual”, afirma Asseituno. A tecnologia será usada em todo o momento no processo de atendimento aos clientes do plano, que deve ter uma faixa de preço entre R$ 200 e R$ 400.
O aplicativo da Sami terá reconhecimento facial para evitar fraudes. Os consumidores também, no primeiro acesso, preencherão uma ficha para dar informações sobre seu histórico de saúde e serão sempre acompanhados por um médico de família. A ideia é que cada médico atenda de mil a dois mil clientes da Sami. Os mil primeiros clientes terão ainda um ano grátis de Wellhub (antigo Gympass), que dá acesso a mais de 55 mil academias e 46 aplicativos de saúde.
“Eu quero ser o Nubank dos planos de saúde”, diz Asseituno
A startup começa com uma parceria com o hospital Hospital Leforte de São Paulo (BP), onde terá uma clínica de atendimento primário. O laboratório parceiro é o Labi, clínica de baixo custo fundada por Marcelo Moll Barboza, ex-CEO da Dasa, que tem mais de 20 pontos em São Paulo e recebeu aporte da Igah Ventures (fusão da e.bricks ventures com a Joá). A rede de médicos especialistas será compostas por profissionais da BP.
Nesse momento, a Sami vai focar seus esforços na cidade de São Paulo e expandirá a rede aos poucos. Mas o plano virá também com um seguro saúde, que pode ser usado pelo beneficiário em atendimentos de emergência em outras cidades do Brasil.
Mercado bilionário
A startup vai brigar por um mercado de mais de R$ 220 bilhões, segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), e que cresce, em média, 20% ao ano. Atualmente, 46,9 milhões de brasileiros têm planos privados. A imensa maioria deles, 31,6 milhões, são planos empresariais, o alvo da Sami.
Quando criou a Sami, Asseituno, que é formado em medicina pela Universidade Federal de São Paulo, quis atacar as ineficiências do setor de saúde. A remuneração de um prestador de serviço, em geral, é baseada em volume. Isso incentiva internações e pedidos de exames e não o trabalho de prevenção. As operadoras, por sua vez, querem que seus clientes não usem os serviços. Essa é a base de uma relação distante, em que os dois só “conversam” quando a relação estressa.
“Eu falo que o modelo do setor é de um restaurante à la carte, em que o paciente quer medicamentos e exames e o médico e hospital que empurram um monte de coisas ganham pontos no final”, afirma Asseituno. “O modelo de remuneração premia a ineficiência.”
O resultado disso se reflete na chamada inflação médica, usada como base para o aumento dos planos empresariais, que é sempre maior do que a oficial. Neste ano, ela deve ser da ordem de 15%, quase cinco vezes maior do que a inflação oficial.
“É um setor quebrado”, diz um investidor que tem healthtechs em seu portfólio, mas não quis se identificar. “É preciso criar um modelo alinhado com o prestador. Se o paciente não usa, ele recebe. Se o paciente usa, ele recebe no limite do que foi combinado. A sinistralidade tende a ser menor.”
É o que vai fazer a Sami, que paga um valor fixo de remuneração aos seus parceiros. Mas a startup não é a única a buscar esse modelo. Healthtechs como Alice, que tem o investimento da fundo de venture capital Kaszek Ventures, e Amparo Saúde apostam em estratégias semelhantes.
Gigantes do setor, como Amil, Hapvida, Intermédica e Prevent Senior, investem também na verticalização, em que controlam todo o atendimento, bem como são donos dos hospitais e clínicas para ter os custos sob controle.
O mais recente ator desse mercado é o fundador da Qualicorp, José Seripieri Junior. Um ano após deixar a empresa que fundou, ele está de volta ao mercado com o lançamento da operadora de convênio médico Qsaúde, que chega ao mercado com um investimento de R$ 120 milhões.
A Qsaúde será uma mescla de uma operadora verticalizada com uma seguradora. Terá rede credenciada enxuta e médicos e hospitais de primeira linha. Todos os usuários do novo plano de saúde serão atendidos por um médico de família da Clínica Einstein.
É com essas empresas que a Sami vai concorrer a partir de novembro. Questionado como um startup que está dando os primeiros passos pode competir com empresas estabelecidas, algumas delas como capital aberto na bolsa e capitalizadas, Asseituno responde que o importante, nesse novo cenário, não são os hospitais, mas sim os investimentos em tecnologia.
“Hoje, as empresa dessa área que levantaram capital para verticalizar investem em cimento e tijolo. Eu não preciso construir prédios: tem um monte de clínica, um monte de hospitais. O que eu preciso é, com tecnologia, ajudar eles a melhorarem, a fazer análises de dados e a diminuir as fraudes.” E conclui. “O Uber e o Airbnb provaram que o ativo não é o game changer.”
O modelo da Sami é a americana Oscar Health, que já levantou US$ 1,5 bilhão de investidores como Alphabet, General Catalyst, Khosla Ventures, Lakestar e Thrive Capital. Em sua última rodada, de US$ 225 milhões, a startup, que é uma operadora digital de planos de saúde, foi avaliada em US$ 3,5 bilhões. Atualmente, conta com mais de 420 mil clientes nos Estados Unidos e sua receita deve atingir US$ 2 bilhões no fim deste ano.
Um dos investidores da Sami, Alan Warran, é ex-CTO da Oscar Health. Ele foi também vice-presidente do Google e um dos criadores do Google Drive, serviço de armazenamento na nuvem da gigante de internet. Outros investidores ilustres também fazem parte da base de acionistas da Sami. Entre eles, Paulo Veras, ex-99, primeiro unicórnio brasileiro, e Sérgio Ricardo do Santos, ex-CEO da Amil.
Asseituno, por sua vez, era estudante de medicina que, além dos livros de anatomia, gostava de ler autores clássicos do mundo dos negócios, como Peter Drucker (1909-2005), um dos principais gurus de gestão, e Jack Welch (1935-2020), o executivo que reinventou a General Electric, tornando-a a empresa mais valiosa do mundo.
Depois de formado, Asseituno se enveredou pelo mundo dos negócios ao criar uma empresa de eventos, a Live Healthcare, que vendeu para o grupo Informa, uma gigante do setor em 2018. Seu sócio na Sami, Guilherme Berardo, criou a primeira rede de hospitais de longa permanência no Brasil, a Premium Care.
Reprodução da matéria publicada no NeoFeed, no dia 20/10/2020.