Dia Internacional da Mulher. A data não é apenas mais uma a fazer parte do calendário comercial. É um dia de mobilização e, acima de tudo, de conscientização sobre a violência, o preconceito e a discriminação que marcam a trajetória feminina ao longo dos anos.
A desigualdade de oportunidades entre homens e mulheres ainda é muito significativa na atualidade. E no Brasil não é diferente. No estudo Estatísticas de Gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é possível ver algumas distorções em relação ao gênero.
Um exemplo: apesar da participação feminina no mercado de trabalho ter aumentado pelo 5º ano seguido, as mulheres seguem ganhando menos que os homens. E na saúde? Como é essa realidade?
Para responder essas perguntas, reunimos informações de diversas fontes para trazer um retrato da participação feminina na Saúde brasileira. Neste texto, trazemos também um pequeno perfil de cinco mulheres que se destacaram neste segmento. Vamos lá?
Panorama da presença feminina no mercado de trabalho
No estudo apresentado pelo IBGE, a taxa de participação das mulheres com 15 anos ou mais de idade no mercado de trabalho foi de 54,5%, enquanto entre os homens, a participação chegou a 73,7%.
Já em relação à instrução, as mulheres apresentam maior nível de escolaridade já a partir do fim do Ensino Fundamental e são maioria entre as pessoas que frequentam o Ensino Médio e Superior.
Mas isso não garante a elas maior sucesso profissional ou ganho financeiro mais significativo. Em 2019, mesmo tendo mais instrução, as mulheres receberam, em média, cerca de 77,7% do rendimento dos homens (o que equivale a ¾ do salário).
A distorção fica ainda mais evidente nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, exatamente onde os salários são mais elevados.
A desigualdade é ainda maior no nível gerencial. Além de ocuparem somente 37,4% desses cargos, a diferença salarial entre homens e mulheres aumenta nos cargos com maiores rendimentos.
Em posições de diretoria/gerência as mulheres receberam o equivalente a 61,9% do valor do salário de homens que ocupam os mesmos cargos. Entre intelectuais e profissionais de áreas científicas, o número é parecido. Neste grupo, o salário das mulheres corresponde a 63,6% do rendimento dos homens.
Em resumo: as mulheres estudam e se preparam mais como profissionais para ganhar menos. Além disso, acumulam o peso das responsabilidades domésticas e familiares em sua rotina, fazendo com que isso também se reflita nas relações de trabalho.
Basta observar alguns dados do estudo para ver como o impacto da chamada “jornada dupla” é decisivo para as mulheres.
Quando falamos de afazeres domésticos (incluindo cuidados com pessoas), as mulheres dedicam, em média, 21,4 horas semanais para essas tarefas contra 11 horas que os homens gastam exercendo as mesmas atividades.
Já a presença de crianças com até 3 anos vivendo no mesmo domicílio é mais um entrave para a presença feminina no mercado de trabalho. Basta dizer que as profissionais que têm crianças nessa idade em casa têm menor percentual de ocupação (54,6% contra 67,2% das mulheres que não possuem crianças nessa faixa etária em casa).
É interessante observar que, entre os homens, a presença de crianças com até 3 anos de idade vivendo na mesma casa não é um fator negativo. Ao contrário. O nível de ocupação dos homens com crianças pequenas em casa é maior (89,2%) do que profissionais que não têm crianças em seu domicílio (83,4%).
Os números mostram uma realidade que toda mulher vive e conhece de perto. Mas, acima de tudo, eles retratam o quanto nossa sociedade ainda carece de mudanças e ações que transformem esses indicadores.
Mulheres na saúde
Quando fazemos um recorte da presença feminina nas áreas acadêmicas, percebemos que a participação das mulheres é muito maior nas graduações relacionadas ao bem-estar e a serviços pessoais (onde estão incluídas áreas como Serviços Sociais e Pedagogia, por exemplo).
Nas graduações relacionadas à Saúde, as mulheres representam 73,2% das pessoas matriculadas nos cursos presenciais. Esse percentual exclui a Medicina, tradicionalmente uma área onde há predomínio masculino – mas que também vem mudando de perfil nas últimas décadas.
Aqui vale olharmos dados específicos e mais detalhados sobre algumas das principais atividades profissionais do segmento, começando pela Enfermagem.
Segundo a pesquisa Perfil da Enfermagem, realizada em parceria pelo Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) e pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), as equipes de enfermagem são compostas predominantemente por mulheres. Elas representam 84,6% dos profissionais da área, incluindo enfermeiras, técnicas e auxiliares de enfermagem.
Com o tempo, o perfil vem mudando também na Medicina, tradicionalmente uma área onde a presença masculina sempre foi predominante. Apesar dos homens ainda serem maioria entre os médicos em atividade no Brasil, temos cada vez mais médicas entrando no mercado de trabalho.
Com isso, a diferença de profissionais dos dois gêneros vem mudando e, em duas décadas, o número de mulheres que exercem a medicina no Brasil duplicou. No último século, a crescente presença das mulheres na Medicina merece destaque.
Em 1910, por exemplo, elas representavam apenas 22,3% dos profissionais da área. Nos anos 60, o percentual diminuiu mais – e elas se limitavam a apenas 13% do total de médicos no país.
Foi só a partir da década de 80 em diante que as mulheres ampliaram e consolidaram sua participação na Medicina – chegando a 46,6% da população de médicos brasileiros em 2020.
Evolução do número de médicos entre 1910 e 2020 segundo sexo – Brasil, 2020
ANO | FEMININO | % | MASCULINO | % |
---|---|---|---|---|
1910 | 2.956 | 22,3 | 10.134 | 77,7 |
1920 | 3.015 | 21,5 | 11.016 | 78,5 |
1930 | 3.037 | 19,1 | 12.862 | 80,9 |
1940 | 3.131 | 15,1 | 17.614 | 84,9 |
1950 | 3.450 | 13,2 | 22.670 | 86,8 |
1960 | 4.519 | 13,0 | 30.273 | 87,0 |
1970 | 9.341 | 15,8 | 49.653 | 84,2 |
1980 | 32.239 | 23,5 | 105.108 | 76,5 |
1990 | 67.483 | 30,8 | 151.601 | 69,2 |
2000 | 104.554 | 35,8 | 187.372 | 64,2 |
2010 | 145.568 | 39,9 | 219.189 | 60,1 |
2020 | 222.942 | 46,6 | 255.040 | 53,4 |
informações incompletas. Fonte: Scheffer M. et al., Demografia Médica no Brasil 2020
Todos os dados relativos à presença de mulheres na Medicina foram extraídos da Demografia Médica 2020, produzida através do Acordo de Cooperação Técnica entre a Universidade de São Paulo (USP) e o Conselho Federal de Medicina (CFM).
Na mesma pesquisa, também podemos constatar que, já em 2020, as mulheres já são maioria nos grupos mais jovens (total de 58,5% entre os médicos com até 29 anos e 55,3% de presença na faixa de 30 a 34 anos).
No grupo com idade entre 35 e 39 anos, há um equilíbrio numérico entre os gêneros, com 49,7% de mulheres e 50,3% de homens.
Distribuição de médicos segundo idade e sexo – Brasil, 2020
FAIXA ETÁRIA | MASCULINO | % | FEMININO | % | TOTAL |
---|---|---|---|---|---|
< = 29 anos | 31.459 | 41,5 | 44.329 | 58,5 | 75.788 |
30 – 34 anos | 34.269 | 44,7 | 42.320 | 55,3 | 76.589 |
35 – 39 anos | 32.985 | 50,3 | 32.546 | 49,7 | 65.531 |
40 – 44 anos | 27.715 | 55,4 | 22.335 | 44,6 | 50.050 |
45 – 49 anos | 20.039 | 52,8 | 17.929 | 47,2 | 37.968 |
50 – 54 anos | 18.498 | 53,5 | 16.050 | 46,5 | 34,548 |
55 – 59 anos | 19.097 | 55,5 | 15.340 | 44,5 | 34.437 |
60 – 64 anos | 20.503 | 59,8 | 13.760 | 40,2 | 34.263 |
65 – 69 anos | 23.417 | 67,7 | 11.154 | 32,3 | 34.571 |
> = 70 anos | 27.058 | 79,0 | 7.179 | 21,0 | 34.237 |
TOTAL | 255.040 | 53,4 | 222.942 | 46,6 | 477.982 |
informações incompletas. Fonte: Scheffer M. et al., Demografia Médica no Brasil 2020.
Em homenagem à luta e à dedicação de todas as mulheres que atuam na Saúde – principalmente diante de uma pandemia tão dura como vivemos agora – destacamos também brasileiras que fizeram história e marcaram seu nome no segmento.
Cinco mulheres que fizeram história na Saúde no Brasil
Ana Néri
Anna Justina Ferreira Nery – ou simplesmente Ana Néri – é considerada a precursora da Enfermagem no Brasil. Nascida em 1814, na Bahia, ela se casou com 23 anos e ficou viúva seis anos depois, passando a cuidar sozinha dos três filhos.
Dois deles eram oficiais do Exército, tendo sido convocados para lutar na Guerra do Paraguai (1864-1870). Por causa disso, Ana Néri pediu autorização ao presidente da Província da Bahia para acompanhar seus filhos, oferecendo-se para ajudar a cuidar dos feridos na batalha.
O pedido foi aceito e ela partiu com os combatentes para atuar como enfermeira. Mesmo perdendo um dos filhos, ela foi incansável no cuidado aos soldados que lutaram nos campos do Humaitá, Assunção e Salto Corrientes.
Em seu retorno ao Brasil, sua dedicação às ações humanitárias foi reconhecida pelo governo da época, que concedeu a ela a Medalha Geral de Campanha e a Medalha Humanitária de primeira classe.
Ana Néri faleceu em 1880, no Rio de Janeiro. Em 1923, a primeira escola oficial de Enfermagem brasileira foi batizada em sua homenagem.
Maria Augusta Generoso Estrela
Maria Augusta Generoso Estrela nasceu em 1860 e foi a primeira brasileira a se tornar médica. Filha de portugueses, chegou a estudar em Portugal na adolescência. Ao regressar ao Brasil, teve acesso a revistas americanas, onde viu a biografia de uma jovem americana que se formou em Medicina.
Interessada no assunto, compartilhou com o pai o desejo de ser médica. No entanto, em 1875, era proibido o ingresso de mulheres nas Faculdades de Medicina no Brasil. Dessa forma, pediu apoio paterno para estudar no exterior – mais exatamente na Medical College and Hospital for Women, em Nova Iorque.
Por ter apenas 15 anos, precisou passar por exames especiais para provar que poderia realizar os estudos por lá. Com fluência perfeita no inglês, Maria Augusta conseguiu ser aprovada e cursar a graduação desejada.
O caso teve grande repercussão no Brasil. Antes de se formar, ela quase precisou abandonar os estudos devido à falência enfrentada pela família. Ao saber que a estudante brasileira em Nova Iorque estava com dificuldades de se manter, D. Pedro II assinou um decreto, concedendo a ela uma inédita bolsa de estudos para cobrir seus gastos, em 1877.
Foi diplomada com honras, sendo escolhida oradora da turma. Em 1881, ainda em Nova Iorque, abriu um jornal com uma colega de faculdade. A publicação foi batizada como “A mulher” e tratava dos interesses e direitos da mulher brasileira.
No ano seguinte, retornou ao Brasil, onde revalidou seu diploma na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Passou a clinicar na cidade, onde casou e teve cinco filhos com um farmacêutico. Faleceu em 1946.
Maria Odília Teixeira
A baiana Maria Odília Teixeira tem duplo destaque na história da Medicina no país. Além de ser a primeira médica negra do Brasil, ela também foi a primeira professora negra da Faculdade de Medicina da Bahia, onde deu aulas de Clínica Obstétrica.
Nascida em 1884, ela era filha de um médico de origem humilde e que criou os filhos com muito sacrifício. Um de seus irmãos se formou em Direito e foi com apoio dele que ela conseguiu cursar Medicina e se formar em 1909.
Até então, apenas seis mulheres haviam se formado médicas por aquela Faculdade. Cinco anos após sua graduação, passou a lecionar na faculdade onde estudou. Falava francês fluentemente, além de ler em latim e grego.
Casou em 1921 com um advogado descendente de franceses, com quem teve dois filhos. Anos depois, já idosa, viu seu marido ser preso pela ditadura militar de 1964. O fato a adoeceu e a levou à morte em data desconhecida.
Nise da Silveira
A alagoana Nise Magalhães da Silveira é um nome que revolucionou o tratamento psiquiátrico, sendo reconhecida mundialmente por sua contribuição na área.
Nascida em 1905, ela foi a única mulher a se formar médica entre os quase 160 alunos da turma de 1926, na Faculdade de Medicina da Bahia. Um de seus colegas de classe seria seu futuro marido, o sanitarista Mário Magalhães da Silveira.
No ano seguinte, após a morte do pai de Nise, o casal se muda para o Rio de Janeiro. Na então capital do país, ela se engaja em diversas atividades, incluindo a arte (que seria um determinante importante para o trabalho que desenvolveria).
Na década de 1930, se envolveu com o comunismo e chegou a ser presa por 18 meses após ter sido denunciada pela posse de obras marxistas. Após ter deixado a cadeia, ela e o marido viveram praticamente como clandestinos. Nise foi afastada até de suas funções como funcionária pública, só retomando as atividades em 1944.
Neste ano, ela passou a trabalhar no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no bairro do Engenho de Dentro, Rio de Janeiro. Por não aceitar o tratamento de doenças psiquiátricas da época – que incluía o uso de choques elétricos, lobotomia e camisas de força – a Dra. Nise passou a atuar no setor de Terapia Ocupacional.
Lá, ela desenvolve técnicas revolucionárias, incluindo o uso da pintura e da terapia com animais domésticos no tratamento de problemas psiquiátricos.
A presença recorrente de mandalas pintadas pelos doentes fez com que ela entrasse em contato com Carl Jung. A partir da proximidade com o famoso psiquiatra, Dra. Nise se tornou uma das precursoras das práticas junguianas no Brasil, desenvolvendo iniciativas pioneiras na terapia ocupacional e no tratamento humanizado de pacientes psiquiátricos.
Sua relevância na Psiquiatria, inclusive, foi registrada em um filme. Dirigido por Roberto Berliner, “Nise – o coração da loucura” retrata a importância de seu trabalho na medicina brasileira.
Rita Lobato Velho Lopes
Rita Lobato Velho Lopes fez história na Medicina brasileira ao se tornar a primeira médica formada no Brasil. Nascida em 1866, na cidade de São Pedro, no Rio Grande (atual Rio Grande do Sul), demonstrou desde pequena a vontade de ser médica.
Apesar do decreto imperial de 1879 que liberava as mulheres a fazerem faculdade, precisou enfrentar muito preconceito para estudar. Seus estudos acadêmicos começaram na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, de onde se transferiu para a Faculdade de Medicina de Salvador, na Bahia.
Lá, venceu a hostilidade e reatividade de colegas e professores para, em 1887, tornar-se a primeira médica brasileira formada no próprio país. Após ser diplomada, retornou ao estado natal, onde casou e teve uma filha. Sua atuação como médica teve grande ligação com atividades assistenciais e de caridade em homenagem à mãe (que morreu no parto do irmão caçula).
Assim, a Dra. Rita prestava serviços gratuitos e atendia a todos que precisavam sem cobrar por isso. Encerrou seu trabalho como médica por volta dos 60 anos e, após ficar viúva, ingressou na política e se engajou no Movimento Feminista e na luta pelo direito da mulher ao voto.
Em 1934, aos 67 anos, foi eleita a primeira vereadora de Rio Pardo. O mandato, no entanto, se encerrou com o golpe do Estado Novo, três anos depois. Faleceu em 1954.
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